Ontem eu percebi que faz tempo que eu não sofro de amor. Almocei com uma amiga que está no meio de um processo de rompimento – no qual ela parece ser a parte frágil – e em nenhum momento da conversa consegui me por na pele dela.
Fui solidário, compreensivo e talvez tenha sido até útil com a minha racionalidade compassiva e a disposição de dividir a minha própria experiência.
Mas, em momento algum fui capaz de segurar a mão dela e dizer, verdadeiramente, como já fiz outras vezes em situações parecidas: "Eu sei o que você está sentindo!" Se tivesse dito isso, eu teria mentido.
Há uma distância enorme entre compreensão e empatia. Compreensão é que está por trás da atitude de um analista quando nos ouve falar das nossas dificuldades. Empatia é o que sente um amigo, ou mesmo um estranho, que está vivendo – e, portanto, sentindo – a mesma situação. Ontem eu fiquei no papel do analista.
Percebi, na amiga, como já percebi em mim, dezenas de vezes, um estranho orgulho da própria dor. A despeito das palavras racionais que ela emite, do desejo declarado de cortar os laços e seguir adiante, há nela uma relutância enorme em se afastar daquilo que a machuca.
Tive a impressão de que ela se agarra à dor como se fosse o mastro de um naufrágio - aquela coisa que a mantém à tona. Tive a impressão, também, de que ela embala, acaricia e alimenta a própria dor. Parece haver conforto nisso, uma espécie de ordem, um lugar de identidade e proteção. O orgulho de quem ouve música no carro, sente os olhos se encherem de lágrimas e pensa: eu amo!
Quem está assim não olha para aquilo que debilita como se fosse algo ruim, da qual é preciso se ver livre. Não! A dor do amor tem algo de sublime, heróico e único – ainda que arrebente o cotidiano, atrapalhe a vida e nos reduza a um pedaço semi-útil de nós mesmos.
Eu, que já fui useiro desse sentimento, desta vez não consegui me identificar com a irracionalidade profunda e teimosa do amor contrariado. Eu percebo as cicatrizes em mim, tenho a lembrança do sentimento, mas não fui capaz de me identificar com ele. Em vez disso, me pus a pensar sobre o que essa situação, ao mesmo tempo banal e estranha, revela sobre as nossas cabeças complicadas.
A primeira coisa que me vem à mente é identidade. É muito difícil saber o que se é a cada momento da vida. São muitos os papéis que nos solicitam e eles frequentemente são contraditórios entre si. A gente sofre tentando saber o deveríamos ser a cada momento.
Os nossos sentimentos também são confusos: como eu me sinto em relação a isso ou aquilo? Como deveria agir? Decisões têm de ser tomadas e os nossos faróis emocionais nem sempre iluminam como gostaríamos. É difícil.
Há, claro, a névoa terrível do desânimo. Há que sair da cama todos os dias e encontrar, meio por hábito e meio por esforço, as razões para tocar adiante quando a vida parece chata e insípida, quando nada brilha o suficiente para nos encher os olhos.
Tudo isso a dor do amor deixa para trás.
Ela simplifica radicalmente a existência. Só existe o objeto do amor e o desejo por ele. A gente se torna esse desejo. Desaparecem todas as dúvidas porque a certeza da dor é imensa e ocupa o espaço. A vida já não parece chata e insípida porque ganha um objetivo claro: sofrer, esperar, ter esperança, todos os dias.
Vista assim, a dor do amor é uma droga mais poderosa do que o amor realizado, é mais forte que um relacionamento de verdade.
Viver um amor e verdade dá trabalho. Ele nos enche de incertezas, nos traz dúvidas sobre nós mesmos e sobre o outro. Às vezes nos coloca em situações desagradáveis, provoca medos. Questiona o nosso papel. Nos põe de frente com as nossas dificuldades e limitações. Uma relação de verdade é uma delícia, mas é, também, um mergulho num mundo complexo e cheio de arestas. Está no capítulo dos desafios que nos fazem crescer.
O contrário disso é o amor idealizado de quem levou um pé na bunda. Este é simples, irreal, vive dentro de nós e, ainda que pareça o contrário, está sob nosso controle. Diferente da vida, que é surpreendente e assustadora, o amor desencarnado é um bichinho de estimação obediente. Pode ser guardado, invocado intimamente ou exibido diante dos amigos ou mesmo da pessoa que nos faz sofrer.
Ao contrário de um ser humano de verdade, esse sentimento não vai nos abandonar numa manhã de sábado. Ele nos pertence verdadeiramente. Pode ficar com a gente por anos. Tem gente que guarda dores como essa pela vida inteira. Dizem: a minha dor...
Minha amiga não vai fazer isso. Ela é esperta, valente, astutamente feminina. Sabe que a vida está pulsando em volta dela, cheia de possibilidades e mistérios esperando para serem desvendados. Como a vida de todos nós, a dela não cabe numa canção amarga que toca no radio. Ou num Ipod inteiro de canções. A vida é maior que a dor. Ainda bem.
Ivan Martins
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