segunda-feira, 14 de junho de 2010

thehurtlo3

Desde que o ex-presidente estadunidense George W. Bush decidiu invadir o Iraque em 2003 – querendo "terminar o trabalho" que o pai tinha começado com Saddam Hussein mais de uma década antes -, Hollywood questionou a nova guerra através de diversos filmes. Mas de todos eles, possivelmente The Hurt Locker seja o melhor da nova safra (descontados os documentários, é claro). Ele não faz discursos – seja a favor ou contra a invasão. Também evita repetir os passos dos filmes que "simplesmente" reproduzem combates, invasões e crimes de guerra. Não. The Hurt Locker se aproxima de Apocalypse Now e Full Metal Jacket ao mostrar como a adrenalina e o perigo da guerra podem viciar como uma droga. Este, aliás, é o lema do filme, dirigido com cuidado e exemplarmente por Kathryn Bigelow. Mas o que faz The Hurt Locker ser diferente dos demais é o foco de sua narrativa, centrada em um grupo de soldados especializado em desarmar bombas. Ação, suspense, dramas pessoais e guerra em um mesmo caldeirão. E o resultado disso, além de manter o espectador atento durante toda a história, é o de provocar a reflexão de forma natural. Agora, ignore o título do filme para o mercado brasileiro – mais uma escolha infeliz de uma distribuidora, porque o nome de "Guerra ao Terror" não tem nada a ver com a idéia original de The Hurt Locker.

A HISTÓRIA: Um robô desliza pelo solo árido de Bagdá. Enquanto ele avança, mulheres, homens e crianças correm para se proteger. Soldados tentam convencer os comerciantes do local a saírem dali porque há um perigo eminente na rua. A Companhia Bravo, liderada pelo sargento Matt Thompson (Guy Pearce) toma todos os cuidados possíveis para evitar que a bomba que eles devem desarmar seja acionada. Mas a missão deles sofre uma reviravolta quando o especialista Owen Eldridge (Brian Geraghty) identifica um suspeito em um açougue próximo e, ao hesitar em puxar o gatilho, permite que a resistência árabe detone o dispositivo. Faltando 38 dias para que o grupo formado por Eldridge e o sargento JT Sanborn (Anthony Mackie) seja substituído por outros especialistas em desarmamento, começa a trabalhar com eles o chefe de equipe e sargento William James (Jeremy Renner). Militar experiente, com experiência na guerra do Afeganistão, James apresenta um comportamento distinto de Thompson: para alguns, ele é corajoso e ousado, beirando o heróico, para outros, suicida e enlouquecido.

VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a The Hurt Locker): Filmes de guerra, normalmente, primam pela ação e por ótimos efeitos especiais. The Hurt Locker não foge desta regra. Mas ele dá um passo à frente ao explorar um tipo de ação diferente, centrada em um trabalho altamente perigoso e feito por especialistas que, normalmente, não viram tema de reportagens, filmes ou ganham o holofote como heróis de guerra. Ainda que muitos especialistas em desarmamento sejam condecorados e subam de postos dentro do exército, normalmente o protagonismo da guerra vai para líderes de equipe, fuzileiros e demais combatentes da "linha de frente". Por essa inversão de papéis, ao colocar um grupo "menos visado" como protagonista da história, The Hurt Locker interessa. Além disso, há tempos não vejo a um filme que assimile tão naturalmente os efeitos especiais que a indústria cinematográfica disponibilize atualmente.

As cenas de slow motion da explosão que "abre" o filme, para começar, são lindas (no que uma explosão pode ser bonita… hehehehehehe) e perfeitamente justificadas. Assim como o uso de imagens de "vídeo", reproduzindo o "olhar" do robô utilizado para a missão. A diretora Kathryn Bigelow, com o auxílio do diretor de fotografia Barry Ackroyd sabe utilizar, em cada momento, a técnica adequada para exprimir o maior realismo possível da história que está sendo contada. Não falta nesta produção também o bom e velho recurso da "câmera na mão", que propicia o movimento adequado para o filme ao "acompanhar" os atores em suas ações.

Algo que gostei muito também, a respeito das escolhas da diretora, foi o seu apreço por mostrar cenas da cidade e da população de Bagdá. As condições de vida daquela população e, especialmente, a sua expressão a respeito dos "invasores ianques" falam mais que muitas linhas de roteiro. E mesmo tratando de algo originalmente feio, como é o caso de um conflito armado, a verdade é que Bigelow consegue nos surpreender com algumas cenas belíssimas e surpreendentes, como aquela do "ninho" de bombas descoberto por James logo em sua primeira missão em Bagdá.

Falando na história, The Hurt Locker agrada por não acelerar a narrativa artificialmente, como tantos filmes de guerra e/ou de ação. O que eu quero dizer com isso? Que ele segue o "tempo real" da ação, criando tensão justamente quando nada está acontecendo – regra básica do suspense, a de criar expectativa no espaço da narrativa em que "nada acontece" até que o extraordinário entre em cena. Acompanhamos, assim, a angústia de Sanborn e de Eldridge cada vez que James parte para uma missão e, contrariando os companheiros, desliga o rádio ou deixa de se comunicar. Todos querem sobreviver naquele território de conflito, mas alguns parecem ter mais apreço às suas vidas do que outros.

Gostei muito do roteiro de Mark Boal. O autor equilibra muito bem, em diferentes doses, ação, drama, suspense e questionamentos sobre a guerra e o modo de vida que ela procura sustentar. Boal acerta também ao dar profundidade aos seus personagens, especialmente ao trio que compõe a Companhia Bravo. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). A verdade é que, ainda que o filme tenha vários personagens interessantes, o maior deles é mesmo o do sargento William James. Como em qualquer história bem escrita, em The Hurt Locker não conseguimos definir se ele é louco, viciado em adrenalina ou um cara que já passou por tanto, que já viu tanto que, no fim das contas, ele se importa com o que realmente é importante. Digo isso porque está claro que ele não consegue mais se adaptar a "vidinha normal" de família consumista nos Estados Unidos. Fascinado por explosivos e pela criatividade dos que colocam a vida em perigo nos combates mundo afora, ele vive de adrenalina. Mas não apenas isso. A atitude dele em relação ao garoto Beckham (Christopher Sayegh) revela que ele, diferente de seus companheiros de farda, se importa com as pessoas que não levam a sua bandeira. Isso é tão raro para um estadunidense quanto a sua vontade de atuar em um campo de batalha mais do que a de voltar para casa. The Hurt Locker mostra, assim, tanto o horror da guerra, sua loucura e capacidade de viciar, quanto o lado das pessoas que fazem parte dos dois lados desta moeda.

NOTA: 10.

OBS DE PÉ DE PÁGINA: Todos os atores de The Hurt Locker se destacam. Este é um destes raros filmes em que não há profissional que entre em cena e que não mostre estar comprometido com aquelas linhas do roteiro destinadas para ele. Ainda assim, de todos os atores de The Hurt Locker, o grande nome do filme é mesmo Jeremy Renner. Que desempenho o deste ator! Fiquei impressionada. Também gostei muito, muito mesmo de Anthony Mackie. Além deles, esta produção conta com algumas pontas de luxo: o já citado Guy Pearce; Ralph Fiennes como o líder de um grupo de soldados que voltava de uma missão de captura de alvos para o exército; David Morse em uma super ponta como o Coronel Reed, que elogia o trabalho de James; e Evangeline Lilly como Connie James – a atriz aparece apenas no finalzinho do filme para falar três frases.

Em um filme em que tudo funciona bem, impossível não citar aspectos técnicos que auxiliam em muito a história, como é o caso da edição de som da equipe de Paul N.J. Ottosson ou a trilha sonora bastante pontual de Marco Beltrami e Buck Sanders. Tão importante quanto a direção precisa e criativa de Bigelow para o filme é a edição de Chris Innis e Bob Murawski. Todos estão de parabéns pelo trabalho bem feito.

Achei especialmente interessante a simbologia de uma das cenas finais do filme. (SPOILER – não leia se você não assistiu ainda a The Hurt Locker). Aqueles meninos correndo ao lado do Humvee de James e Sanborn e atirando pedras no veículo mostravam como, independente das razões que fizeram aqueles soldados irem até o Iraque, não fazia com que eles fossem bem-vindos. Pelo contrário. Mesmo que soldados como eles salvassem vidas impedindo explosões de bombas em locais públicos, para os garotos dali eles eram e sempre serão invasores – e muitas vezes os responsáveis indiretos para que aquelas bombas que eles queriam impedir que explodissem tivessem sido colocadas, em primeiro lugar. Com aquela sequência e de maneira muito singela Boal e Bigelow refletem sobre a eficácia da guerra e do trabalho de James e companhia. Todos sabemos, no fim das contas, que histórias como esta acabam se revelando parte de um círculo de erros repetidos sem fim.

The Hurt Locker ganhou, até o momento, seis prêmios – e foi indicado ainda a outros quatro. Entre os que recebeu, destaque para quatro prêmios especiais no Festival de Veneza do ano passado (incluindo um que faz referência aos direitos humanos); um para a diretora Kathryn Bigelow no Festival Internacional de Cinema de Seattle e outro para o roteirista Mark Boal no desconhecido Festival de Cinema de Nantucket.

Fiquei especialmente impressionada com a avaliação excelente que o filme têm conseguido entre o público e a crítica. Os usuários do site IMDb deram a nota 8 para a produção, enquanto que os críticos que tem textos linkados no Rotten Tomatoes dedicaram 128 textos positivos e apenas três negativos para a produção – o que lhe garante uma aprovação impressionante de 98%. Bacana.

The Hurt Locker estreou no Festival de Veneza do ano passado, em setembro. Depois, o filme fez a sabatina de participar de outros nove festivais mundo afora – o último deles foi o de Melbourne, na Austrália, em julho de 2009. No Brasil o filme foi lançado diretamente em DVD.

Esta produção teria custado aproximadamente US$ 11 milhões – e arrecadado, apenas nos Estados Unidos, até o dia 16 de agosto deste ano, pouco mais de US$ 10,3 milhões. Certamente ela vai conseguir se pagar e, com o faturamento em outros mercados, obter algum lucro – nada comparado a um arrasa-quarteirão claro, mas acredito que não seja essa sua intenção também.

Para os que perderam o fio da história e não lembram exatamente da obsessão dos Bush com Saddam Hussein e o Iraque, deixo aqui um link com um mega resumo sobre esse tema.

The Hurt Locker foi filmado em três locais: na cidade de Amman, na Jordânia; no Kuwait e na cidade de Langley, no Canadá. A escolha da Jordânia ocorreu por sua proximidade ao Iraque – o foco da narrativa.

Durante as filmagens, foram utilizadas três, quatro ou até mais que quatro câmeras de mão de super 16-mm para registrar os detalhes das cenas de ação – o que garante a The Hurt Locker, segundo os produtores, um certo clima de documentário de guerra. O material resultante teria se aproximado a 200 horas de filmagens – mais do que foi reunido pela produção de Apocalypse Now, por exemplo.

Segundo as notas de produção do filme, a equipe de The Hurt Locker foi surpreendida, na primeira semana de filmagens, por uma onda de calor do verão da Jordânia. O sufoco foi tanto que o diretor de fotografia Barry Ackroyd chegou a ficar doente com uma insolação.

Durante as filmagens foram registrados alguns acidentes. Um deles envolvendo o ator Jeremy Renner, que caiu de uma escada, enquanto carregava um menino iraquiano. Por causa deste acidente as filmagens foram atrasadas durante vários dias até que Renner tivesse o tornozelo totalmente recuperado. Outro acidente envolveu um ônibus cheio de refugiados iraquianos contratados como extras para o filme. O veículo tombou em uma estrada quando se dirigia até o local das filmagens. Os produtores afirmaram que ninguém ficou gravemente ferido – mas um dos ocupantes do ônibus teria quebrado o nariz.

A trilha sonora do filme conta com três músicas da banda Ministry – Khyber Pass, (Fear) Is Big Business e Palestina fazem parte do álbum Rio Grande Blood, um trabalho declaradamente crítico à guerra do Iraque e em relação a administração de George W. Bush.

Gostei deste texto (em inglês) da crítica Ann Hornaday, do Washington Post. Ela afirma que "The Hurt Locker trata do Iraque da mesma forma com que Paths of Glory tratou sobre a Primeira Guerra Mundial ou Full Metal Jacket sobre o Vietnã". Hornaday comenta ainda que o filme consegue manter os seus personagens e, por extensão, o público na ponta nervosa de uma faca entre "o caos e o controle, bravatas e colapsos, ameaças e promessas que definem a vida de um soldado".

Lendo o ótimo (e extenso, o que é bacana) texto de Hornaday fiquei sabendo que Mark Boal é um jornalista que conheceu de perto a realidade por ele descrita neste roteiro. Boal acompanhou, durante várias semanas, um esquadrão de elite do Exército especializado no desarmamento de bombas. Como um bom jornalista, habituado a observar os detalhes ao seu redor, ele conseguiu capturar a essência do trabalho destes personagens. Para a crítica de cinema, The Hurt Locker é o melhor trabalho da carreira da diretora Kathryn Bigelow.

CONCLUSÃO: Um filme de guerra primoroso. Bem acabado e misturando diversos estilos cinematográficos – além do óbvio, o de filmes de guerra -, The Hurt Locker inova ao centrar a sua narrativa em um grupo de especialistas em desarmamento de bombas. Como outras produções clássicas do gênero, este filme questiona as motivações pessoais e a eficácia da guerra de maneira muito natural, sem grandes discursos. Centrado em três atores de talento, The Hurt Locker ainda conta com várias pontas de astros conhecidos em papéis minúsculos – o que demonstra a sua capacidade em atrair bons nomes para o projeto. Além de contar com um ótimo roteiro e uma direção criativa, esta produção prima pela qualidade técnica, com a escolha dos recursos adequados para cada momento da história – do slow motion até imagens da câmera de vídeo de um robô, passando pelo uso frequente de câmeras na mão. Merece ser visto tanto por suas belas imagens, pela narrativa envolvente quanto pelos questionamentos que deixa no ar.


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